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domingo, 6 de maio de 2007

Quintas de Leitura em Maio


Falo de um homem que possuía livros de poemas. Foi talvez o único
real leitor de poesia. Ele abria os livros, um livro. Escolhia um poema.
Era um ritual misterioso. Porque ele raspava as letras da página, cui-
dadosamente, como para conservar a integridade do papel. Raspava
e reunia os pedaços negros. Aquecia então água com o vagar próprio
da vertigem. Uma estranha ciência de vapores.

A infusão sucedia: a escura substância do poema misturava-se mais
e mais com o fervor da água, até ao ponto em que tudo aquilo era
vivo. O homem bebia então o poema e o poema flutuava no sangue,
atingindo todos os lugares do corpo, reclamando todos os lugares do
corpo. Não era previsível o efeito do poema. Cada poema dissolvido,
sorvido, feito homem, trazia consigo uma possibilidade própria. O ho-
mem crescia com o poema, crescia mais para si, mais para o poema.

O homem que possuía livros de poemas, possuía uma biblioteca em
branco. Páginas e páginas de poemas arrancados sem vestígios, um
crime perfeito. Era uma biblioteca poética. Uma biblioteca que podia
arder.

-Vasco Gato-

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