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sexta-feira, 18 de abril de 2008

Quinta de Leitura - Foi Ontem!

Ontem lá fui eu assistir à minha primeira Quinta de Leitura como público! A sensação foi muito estranha. Estar ali no foyer do TCA, sem o stress habitual que antecede os espectáculos, e absolutamente tranquila na minha nova condição de espectadora... A sensação foi mesmo muto estranha... acho mesmo, sem querer ser pretenciosa, que algumas pessoas do público (os habitués...) também me olharam estranhamente, deviam estar-se a perguntar o que fazia eu ali de bilhete na mão e mala ao ombro...

Lá dei beijinhos à equipa, lá matei um bocadinho de saudades. É verdade, confesso que tenho saudades da dinâmica deste ciclo. Dei um grande abracinho ao João Gesta, aliás ao longo da noite foram vários os abraços que troquei com aquelas pessoas a quem estava mais ligada e que me souberam muito bem!

Acho que continuo um bocado suspeita para falar destes espectáculos. Apesar de já não ter trabalhado neste, acho que estou ainda demasiado envolvida emocionalmente para falar das Quintas de uma forma critíca.

De qualquer maneira arrisco dizer que gostei imenso do espectáculo. Foi longo mas não senti o peso do tempo pois estava muito absorvida pelo que se estava a passar em cena para dar pelo tempo! Basta olhar para os intervenientes, O José Luís Peixoto, a Yolanda Castaño, o Mário Laginha, os recitadores Natália Luiza, Susana Menezes e Pedro Lamares (as melhores vozes das Quintas) e a parelha Inês Jacques e Eduardo Raon. Tudo isto acompanhado pelas belíssimas fotografias da Mafalda Capela!

Parabéns João por mais uma vez nos presenteares com um belíssimo serão.

E para que não restem dúvidas termino com um poema do José Luís Peixoto que foi dito pela Susana Menezes, no meu entender a melhor intervenção de sempre da Susana:

Arte poética
o poema não tem mais que o som do seu sentido,
a letra p não é a primeira letra da palavra poema,
o poema é esculpido de sentidos e essa é a sua forma,
poema não se lê poema, lê-se pão ou flor, lê-se erva
fresca e os teus lábios, lê-se sorriso estendido em mil
árvores ou céu de punhais, ameaça, lê-se medo e procura
de cegos, lê-se mão de criança ou tu, mãe, que dormes
e me fizeste nascer de ti para ser palavras que não
se escrevem, lê-se país e mar e céu esquecido e
memória, lê-se silêncio, sim, tantas vezes, poema lê-se silêncio,
lugar que não se diz e que significa, silêncio do teu
olhar de doce menina, silêncio ao domingo entre as conversas,
silêncio depois de um beijo ou de uma flor desmedida, silêncio
de ti, pai, que morreste em tudo para só existires nesse poema
calado, quem o pode negar?, que escreves sempre e sempre, em
segredo, dentro de mim e dentro de todos os que te sofrem.
o poema não é esta caneta de tinta preta, não é esta voz,
a letra p não é a primeira letra da palavra poema,
o poema é quando eu podia dormir até tarde nas férias
do verão e o sol entrava pela janela, o poema é onde eu
fui feliz e onde eu morri tanto, o poema é quando eu não
conhecia a palavra poema, quando eu não conhecia a
letra p e comia torradas feitas no lume da cozinha do
quintal, o poema é aqui, quando levanto o olhar do papel
e deixo as minhas mãos tocarem-te, quando sei, sem rimas
e sem metáforas, que te amo, o poema será quando as crianças
e os pássaros se rebelarem e, até lá, irá sendo sempre e tudo.
o poema sabe, o poema conhece-se e, a si próprio, nunca se chama
poema, a si próprio, nunca se escreve com p, o poema dentro de
si é perfume e é fumo, é um menino que corre num pomar para
abraçar o seu pai, é a exaustão e a liberdade sentida, é tudo
o que quero aprender se o que quero aprender é tudo,
é o teu olhar e o que imagino dele, é solidão e arrependimento,
não são bibliotecas a arder de versos contados porque isso são
bibliotecas a arder de versos contados e não é o poema, não é a
raiz de uma palavra que julgamos conhecer porque só podemos
conhecer o que possuímos e não possuímos nada, não é um
torrão de terra a cantar hinos e a estender muralhas entre
os versos e o mundo, o poema não é a palavra poema
porque a palavra poema é uma palavra, o poema é a
carne salgada por dentro, é um olhar perdido na noite sobre
os telhados na hora em que todos dormem, é a última
lembrança de um afogado, é um pesadelo, uma angústia, esperança.
o poema não tem estrofes, tem corpo, o poema não tem versos,
tem sangue, o poema não se escreve com letras, escreve-se
com grãos de areia e beijos, pétalas e momentos, gritos e
incertezas, a letra p não é a primeira letra da palavra poema,
a palavra poema existe para não ser escrita como eu existo
para não ser escrito, para não ser entendido, nem sequer por
mim próprio, ainda que o meu sentido esteja em todos os lugares
onde sou, o poema sou eu, as minhas mãos nos teus cabelos,
o poema é o meu rosto, que não vejo, e que existe porque me
olhas, o poema é o teu rosto, eu, eu não sei escrever a
palavra poema, eu, eu só sei escrever o seu sentido.
José Luís Peixoto, in A Criança em Ruínas

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