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quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Eduardo Prado Coelho sobre Filipa Leal, in Público

AS CIDADES TÊM LUZES NAS PALAVRAS

Parece que Filipa Leal já tinha publicado dois livros de poemas, mas devo confessar que não fazia disso a mínima ideia. São eles "Lua Polaróid" e "Talvez os Lírios Compreendam". Filipa Leal nasceu no Porto em 1979. Formou-se em Jornalismo na Universidade de Westminster em Londres. Já em Portugal, tirou o Mestrado em Estudos Portugueses e Brasileiros na Universidade do Porto. A sua dissertação de mestrado intitula-se "Aspectos do cómico na poesia de Alexande O"Neill, Adília Lopes e Jorge Sousa Braga" (o que mostra a sua diversidade de interesses e leituras, procurando analisar autores consagrados como O"Neill, problemáticos como Adília Lopes, ou pouco conhecidos como Jorge Sousa Braga). É aquilo a que se chama "jornalista cultural". Dedica-se também à tradução colectiva na Casa de Mateus. Mas suponho que a sua obra poética é ainda desconhecida pela maior parte das pessoas. Acaba de publicar "A Cidade Líquida e Outras Texturas", na editora Deriva. É um livro - gostaria de o dizer com a maior convicção - de grande qualidade e de extrema originalidade. Se tivermos em conta aquilo que aparece com a poesia portuguesa mais perto de nós (onde predominam as memórias esparsas, o lirismo difuso, uma certa vulnerabilidade), podemos afirmar sem hesitações que Filipa Leal tem uma personalidade fortemente demarcada. Fui muito surpreendido pelo indiscutível valor do seu livro mais recente. Logo na dedicatória encontramos uma dessas subtilezas gramaticais que fazem a força da poesia de Filipa Leal: "aos amigos que me habitam a cidade" - em que os amigos habitam ao mesmo tempo a cidade, e habitam aquela que é o centro e o eixo destas poemas -, "à família que vai fazendo de mim uma casa onde se possa entrar - e aqui temos uma família que faz de mim uma casa". Do ponto de vista do estilo, Filipa Leal utiliza os mais variados procedimentos: há uma sugestão insistente de oralidade ("Ela disse: Sou uma cidade esquecida. / Ele disse: Sou um rio"), um jogo muito sóbrio de usos da metáfora (nenhuma dimensão decorativa ou expressiva, nenhum lirismo derramado), uma distorsão permanente da forma habitual das frases ("Naufragava-o"), um sentido da redundância por vezes semântica ("Riam alto do alto dos navios"). Na definição poética da "cidade líquida", temos como fio condutor a relação entre a cidade e os barcos. Mas isto vai mais longe. Inesperadas enumerações, uso dos parênteses. Ou ainda: castigos, tonturas, despedidas. E ainda frases que se autocorrigem, frases que se desmentem. A insistência no "não". Leia-se: "A cidade movia-se como um barco. Não. Talvez o chão se abrisse em algum lado. Não. Era a tontura. A despedida. Não. A cidade talvez fosse de água. Como sobreviver a uma cidade líquida? (Eu tentava sustentar-me como um barco). As aves molhavam-se contra as torres. Tudo evaporava: os sinos, os relógios, os gatos, o solo. Apodreciam os cabelos, o olhar. Havia peixes imóveis nas soleiras das portas. Sólidos mastros que seguravam as paredes das coisas. Os marinheiros invadiam as tabernas. Riam alto do alto dos navios. Rompiam a entrada dos lugares. As pessoas pescavam dentro de casa. Dormiam em plataformas finíssimas, como jangadas. A náusea e o frio arroxeavam-lhes os lábios. Não viam. Amavam-se depressa ao entardecer. Era o medo da morte. A cidade parecia de cristal. Movia-se com as marés. (Eu ficara exactamente no lugar de onde saiu.)" O que nos deslumbra é a concisão irradiante das frases. Exemplos: "É uma cidade onde ninguém diz a verdade." "Ela que morria de medo de morrer." "Ela morria tantas vezes / porque morria de medo de morrer." "Não há na cidade um lugar / com lugar." "Só mais tarde entendi o que procurava: um mar." A cidade é triste. Há um lado chuvoso, de Inverno e fim de tarde. Há sobretudo uma imensa solidão. As pessoas andam distantes. Despedem-se dos outros e de si mesmas, morrem de uma morte clandestina. "Nos dias tristes não se fala de aves. / Liga-se aos amigos e eles não estão/ e depois pede-se lume na rua / como quem pede um coração / novinho em folha. // Nos dias tristes é Inverno / e anda-se ao frio de cigarro na mão / a queimar o vento / e diz-se bom dia! / às pessoas que passam / depois de já terem passado / e de não termos reparado nisso. // Nos dias tristes fala-se sozinho / e há sempre uma ave que pousa / no cimo das coisas / em vez de nos pousar no coração / e não fala connosco." Contudo, tu estás presente e alteras a luz de todas coisas. Suspendes o pesadelo. "A rapariga por baixo da luz verde / da árvore / parecia usar a máscara disforme dos pesadelos. //Era uma imagem nítida / quase branca. // Fumava. / olhava-se para dentro do medo / sem rosto / debruçada, lenta, circular. // Era noite. / Eu estava na rua à tua espera. / Na rua, não, no carro. / Eu estava no carro de vidros abertos / de olhos abertos / debruçada. // Mas felizmente tu chegaste / com a tua luz real (tão real) / para me interromper o pesadelo." Há um lindíssimo poema, que é um poema de amor, mas fala de outras coisas, porque o amor anda espalhado pelo mundo. Aqui o diálogo sóbrio, despojado faz-nos compreender a dureza das coisa e ao mesmo tempo a sua beleza: "Ela disse: Sou uma cidade esquecida. / Ele disse: Sou um rio. // Ficaram em silêncio à janela / cada um à sua janela / olhando a sua cidade, o seu rio // Ela disse: Não sou exactamente uma cidade, / Uma cidade é diferente de uma cidade esquecida. // Ele disse: Sou um rio exacto. // Agora na varanda / cada um à sua varanda /pedindo: Um pouco de ar entre nós. // Ela disse: Escrevo palavras nos muros que pensam em ti. / Ele disse: Eu corro. // De telefone preso entre o rosto e o ombro / para quao menos se libertassem as mãos / cada um com suas mãos libertas. / Ele temeu o adeus disse: Sou uma cidade esquecida. Ele riu."

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